Péricles Cavalcanti
Baião Metafísico
Quando
gravou seu primeiro disco como cantor, em 91, Péricles
Cavalcanti recebeu de Caetano Veloso as seguintes
palavras: “Péricles marca uma brutal
correção na música popular de
hoje e eu me sinto muito influenciado desde que o
ouvi pela primeira vez”.
E essa primeira vez já vai longe. Na estrada
há um bom tempo, Péricles se mantém
afinado com a criatividade, a inteligência e
o bom gosto.
Neste “Baião Metafísico”,
Péricles continua fazendo o que dele afirmou
Caetano. E com que correção! Letras
e músicas tratam com leveza — e sem leviandade
— de temas variadíssimos.
A canção que dá nome ao disco
é ótimo exemplo. Revela um poeta —
tal qual o sertanejo — capaz de tirar leite
de pedra. Os versos de Péricles e os violinos
de Atílio Marsiglia são mais do que
transcedentes. Vão e vêm, e nos fazem
agradecer “ao povo brasileiro, norte, centro,
sul, inteiro, onde reinou o baião”.
O disco se abre com “Eros Motor”, samba
delicioso e delicado, em cuja letra Péricles
alinha as tantas faces de Eros e exalta uma delas,
a paixão, motor da vida. Já na bem-humorada
“Absoluta”, Péricles homenageia
as vozes anônimas que ecoam pela platéia
nos shows de nossas cantoras: “Poderosa! Absoluta!
Necessária!”. A homenagem se estende,
é claro, às próprias cantoras,
“imprescindíveis”.
O bom humor continua na memorável “Eu
queria ser Cássia Eller”. Nosso agradecimento
agora vai para Waly Salomão, grande poeta deste
país, por ter encorajado Péricles a
compor a canção.
Inspiradora de um verso de “Podres Poderes”,
de Caetano (Queria gritar setecentas mil vezes como
são lindos os burgueses e os japoneses”),
a rosiana “Como São Lindos os Chineses”
(“... naquela maneira comprida de vestir e no
modo tão curto de andar...”) traduz o
traço chinês (“com passo enfeitadinho,
emendado, reto, proprinhos pé e pé”)
que Guimarães tão bem descreveu em “Orientação”,
grande conto de “Tutaméia”. A canção
— feita e proibida na década de 70 —
recebe agora sua primeira gravação.
Outro ponto alto do disco é a envolvente “Questões”.
Arranjo, interpretação, letra e música
convidam para repetidas audições. Paralelo
ao narrador, o fluxo de consciência masculino-feminino
dos personagens pergunta sobre o jogo do amor: “De
quem é o comando? Quem fica na espera?”
Num salto, encontramos Alice, que, é claro,
está no País das Maravilhas, mas também
está, definitiva, entre nós. Quem foi
Alice? A letra redescobre com ternura e alguma saborosa
lascívia a inesquecível persongem de
Lewis Carroll.
O eterno laço de Péricles com os concretistas
se faz presente em “Ode Primitiva (Quando a
maré...)”. O texto é do fecundo
“Livro das Galáxias”, de Haroldo
de Campos, e Péricles consegue a magia de nos
fazer crer que a música que lhe deu é
diferente da que nele já era jacente e latente.
“Musical”, letra e música de Péricles,
instiga docemente quem ainda crê na coerência:
“Tudo discorda em harmonia universal, tudo é
assim musical”. Identificada com a fisolofia
pré-socrática, fez parte de “A
Farra da Terra”, espetáculo do grupo
“Asdrubal Trouxe o Trombone”.
Entre as demais canções do disco, destaca-se
“Clariô”, fragmento de pura beleza,
que expõe com simplicidade a ambivalência
da energia de um raio em meio a uma tempestade.
Péricles nos contempla ainda com uma genial
versão, feita em parceria com Caetano Veloso,
de “It’s all over now, baby blue”.
A sugestão de transformar “baby blue”
em “negro amor” foi de Rogério
Duarte. As sanfonas de Gabariel Levy acentuam o traço
negro desse amor e nos remetem a uma viagem que passa,
entre outros lugares, por Buenos Aires.
Este “Baião Metafísico”
é a prova cabal de que há espaço
para a criatividade e a inteligência. Os ouvintes
sensíveis certamente degustarão cada
gota do talento de Péricles. O disco está
pronto e ávido. Ouvi-lo logo é imperativo.
Release escrito por Pasquale Cipro Neto