Péricles Cavalcanti
Canções, de Péricles Cavalcanti, 1991
Canções, de Péricles Cavalcanti, 1991
Uma canção não é uma letra entoada. Uma canção não é uma melodia que diz. Uma canções é algo que ocorre entre verbo e som, sem privilegiar nenhum deles. Ante uma canção de verdade, qualquer comentário crítico que separa letra e música parece patético. A canção não é um código composto pela junção de dois códigos primários, pois sua origem conjunta é anterior a essa divisão. A palavra cantada antecede a poesia falada ou escrita, a música instrumental, os frutos especializados do tempo do homem.
Há quase duas décadas, Péricles Cavalcanti vem nos brindando com alguns desses monolitos indivisíveis, nas vozes de Gal, Caetano, Miucha, Asdrúbal Trouxe o Trombone (com o LP da trilha de A Farra da Terra, composta por ele), entre outros. Como um moderno compositor à moda antiga, da estirpe de "Herivelto, Caymmi, Sinhô, Assis Valente, Wilson Batista, Noel, Heitor dos Prazeres" (que pouco gravaram, numa época em que a divisão de papéis entre autor e interprete era mais demarcada). Como se desde sempre ele viesse preparando esse disco, que parece buscar, com clareza e claridade, a especificidade da canção.
O nome do disco é a senha. E o fato de optar por arranjos com poucos elementos, ao invés de uma massa sonora mais compacta, adequa-se bem ao seu intento. Péricles soa como se resgatasse o sentido mais puro, original, primário desse objeto de voz. Não por recuperação de formas ou procedimentos do passado, mas trabalhando para a sofisticação dessa linguagem; levando ao limite as possibilidades de condensação informativa na mensagem cantada.
Talvez o aprimoramento desse projeto tenha nos feito esperar tanto tempo por esse disco (que, vindo agora, com um conceito tão inteiro, não parece uma reunião de canções feitas em épocas diversas). Talvez também por isso permeie quase sodas as faixas uma reflexão sobre a canção, o cantar, a função e o poder da música.
O disco de Péricles abre com Dos Prazeres, das Canções, uma música cantada numa primeira pessoa que é, ao mesmo tempo, uma pessoa e a música — a pessoa dele ante a tradição, e a música popular brasileira, que passa pela boca de todos aqueles compositores.
Música para ser alguém.
O disco de Péricles encerra com Eassimserá, uma salsa cantada na terceira pessoa, sobre uma mulher que metaforiza a música latina.
Alguém para ser música.
As duas faixas, abrindo e fechando o disco, apontam para essa inteireza, entre ser e som (presente em todo o disco, e aparecendo literalmente em outros momentos, como no refrão de Meu Bolero). A pessoa-música da primeira faixa vê com a ótica do criador dessas mensagens estranhamente poderosas. A música-pessoa da última faixa é vista com a ótica do receptor, contaminado por esse poder. Primeira e terceira pessoas / masculino e feminino / samba e salsa (que fez “a cabeça do jazz e rock'n'roll”) / o mesmo e o outro. As duas faixas se referem a essa experiência plena em que a música penetra e é penetrada pela vida. E as duas apontam para a permanência no tempo, como uma espécie de resistência vitoriosa: “Eu sou aquele que o tempo nao mudou” (Dos Prazeres, das Canções); “Era assim / É e será / É assim / E assim será" (Eassimserá).
E entre elas, preenchendo o espaço da boca ao ouvido, está o resto. A surpreendente seleção de momentos da mais alta poesia — Joyce do Finnegans Wake (Nuvoleta) e John Donne (Elegia), via Augusto de Campos; Galáxias, de Haroldo de Campos (Ode Primitiva) — e sua transformação absolutamente natural em letras de música. As canções curtas que se bastam. A liberdade de transitar por diversos gêneros (a maneira índia negra grega gregoriana eletrônica) com a mesma marca pessoal. A limpidez do canto, que diz ao máximo o que as canções estão dizendo. As contribuições tão bem colocadas de Caetano (Meu Bolero) e Lulu (Blues da Passagem). O despojamento dos arranjos. A simplicidade conjugada à inovação — nosso sonho e nossa proteína.
O disco de Péricles me fez pensar naquele "mistério das letras de música", de que fala Augusto de Campos: "tão frágeis quando escritas, tão fortes quando cantadas".
Pois é na possibilidade de imagens tão densas como "sonho proteína" (uma conjunção de dois substantivos que se adjetivam, do porte do genial "brutalidade jardim", de Oswald, usado por Torquato; tirando o sonho, de sua condição abstrata, para a concretude de substância nutritiva vital, absorvida fisicamente pelo corpo) conviverem com imagens-ready-made eficientemente banais como "leite condensado", que reside a graça, a potência dessa coisa que se fez "por que não? porque sim". Essa possibilidade só existe no ambiente fundado pelo canto.
S6 a mensagem cantada pode encher de novos sentidos cada sílaba; pode criar seus próprios ritmos; pode transformar "dor" em "dou" (Dos Prazeres, das Canções); pode falar tudo e não dizer nada (Sem Drama); pode iluminar o paradoxo de sua própria existência, apenas com o deslocamento de uma tônica, como na equação gertrudesteiniana, no final de Sem Drama: “Uma canção é uma canção é uma canção”.
Arnaldo Antunes