Péricles Cavalcanti
Mil e Uma: A trilha sonora de Péricles Cavalcanti
Outro dia li no jornal a declaração de alguém de que, se o cinema fosse uma grande arte, não precisaria de um fundo musical para emocionar. Em outras palavras, para o autor dessa declaração, o cinema não é grande arte porque em estado puro — isto é, sem música — não tem capacidade de emocionar e, quando tem essa capacidade, deve-a às muletas da música.
Mas, sem sequer discutir os preconceitos embutidos aí, observo que o cinema está se lixando para a “arte pura” ou a “grande arte”. Questionáveis são esses conceitos, e não ele. Com efeito, não é a pureza da arte mas a arte da mistura que caracteriza o bom cinema. O diretor consumado é o que consegue obter os melhores resultados das parcerias que administra, integrando-as perfeitamente na realização de um projeto singular. A trilha sonora constitui um desses ingredientes. O que a distingue dos outros componentes de um filme é que, muitas vezes, ela é capaz de sobreviver por si só, independentemente do filme que a ocasionou. Tal é o caso do CD da trilha que o compositor Péricles Cavalcanti compôs, a pedido da diretora Susana Moraes, para Mil e Uma, admirável filme que se insere na linhagem cultural de Marcel Duchamp, Lewis Carroll e Gertrude Stein. Diversas obras desses artistas fazem parte do repertório das unidades semânticas com que se articula o discurso a um tempo visual, verbal e musical do filme. Mas isso é organicamente incorporado na trama vital de Mil e Uma de tal modo que — luz balão — ele jamais exala sequer o mais leve odor de museu.
Quanto ao CD, já a sua primeira faixa, “Fantasia Monkiana”, que, exercendo função análoga à de uma abertura wagneriana, introduz não só os temas, ou Leitmotive, da trilha, mas também adianta um repertório dos moods que serão por ela desenvolvidos, é absolutamente irresistível. É o Thelonius Monk misterioso e brilhantemente noturno de “Round About Midnight” que se acha aqui mais imediatamente citado. Alguns toques de humor nos lembram ademais que a referência a Monk não poderia ser mais apropriada, pois a graça, o estilo dinâmico do piano e a aparente simplicidade — à primeira audição — das composições na realidade complexas, sutis e inovadoras do co-fundador do be-bop e do cool jazz incorporam-no automaticamente ao rol dos artistas acima citados.
“Qual é a resposta? / Me diga, então / Qual é a pergunta?”, dizem três versos da letra do “Tema de Alice”, de Péricles, lindamente cantada por Adriana Calcanhotto. O primeiro desses versos é a pergunta que Alice B. Toklas fez a Gertrude Stein, quando esta se encontrava no leito da morte; os outros dois, a pergunta-resposta que ouviu da companheira. No mesmo espírito, uma outra canção de Péricles, o “Tema de Antonio”, sobre a frase de Duchamps: “Não tem solução porque não tem problema”. A música explora possibilidades rítmicas e sugestões melódicas dessa frase, repetida como mantra por Arnaldo Antunes. Não há como não lembrar aqui a proposição 6.521 do Tractatus de Wittgenstein, segundo a qual “a solução do problema da vida observa-se no desaparecimento desse problema.” Em determinado momento, Péricles canta um trecho da canção de Dorival Caymmi: “Não tem solução esse nosso amor...” “Não tem solução porque não tem problema”, repete Arnaldo. A brincadeira sugere ironicamente a possibilidade da dissolução dos problemas amorosos, tomados como pseudoproblemas cultivados pela subjetivização romântica do amor. “A própria vida que estamos vivendo”, dizia, no mesmo estado de espírito, John Cage, “é maravilhosa quando, livres de nossas mentes e de nossos desejos, a deixamos agir por conta própria”. Esteticamente, essa atitude Duchamp-Wittgen-Stein-Carroll-Cageana se traduz pela conferição de privilégio às superfícies das coisas. É assim que a letra da versão cantada de “Mais um Bolero” não compartilha com os boleros comuns a retórica da profundidade do amor ou do desprezo pelo mundo exterior à paixão. As luzes cálidas do erotismo não focalizam um único ponto do mundo — aquele onde se encontra o ser amado —, relegando tudo o mais a uma penumbra gélida. Ao contrário, tomando o amor como “um claro querer viajar”, ela expande geograficamente o próprio ser amado e erotiza o mundo inteiro.
Semelhante atitude estética se apresenta também nas jóias que são os poemas de Augusto de Campos, magistralmente musicados por Péricles. “De Sol a Sol”, “Longe e Perto” , assim como “Êxtases”, manifestam a experiência mística da anulação da oposição convencional entre subjetividade e objetividade, egoidade e alteridade. Augusto está representado também pela maravilhosa tradução do “Poema Cauda”, de Lewis Carroll, musicada por Péricles e instigantemente interpretada por Arrigo Barnabé.
Já mencionei Augusto de Campos, Adriana Calcanhotto, Arrigo Barnabé e Arnaldo Antunes. Cid Campos, presente em vários instrumentos e toques, também merece um destaque especial. Péricles, mobilizado por Susana de Moraes para participar do filme dela, também soube, por sua vez, mobilizar o talento desses e de outros artistas para a produção da sua trilha. Com a colaboração deles, os atributos luminosos que sempre distinguiram o trabalho arejado, límpido, cool e swingado de Péricles lhe ensejaram uma fecunda parceria com Susana. Assim como o filme, a trilha sonora exerce um efeito liberador, abrindo horizontes por meio da beleza, do humor e da proposição
Release escrito por Antonio Cicero