Péricles Cavalcanti
Sobre as Ondas de Péricles Cavalcanti
Péricles
Cavalcanti compõe há mais
de vinte anos, e assim como começou
a fazer música “tarde”,
na faixa dos 26, também tardou a
começar a fazer disco. Seu primeiro
álbum, o simples e significativamente
intitulado Canções , uma bela
surpresa, saiu em 91, e agora ele nos lança
Sobre as Ondas, outra bela obra, com mais
um título sintomático. Tudo
isso explica em parte por que o que acontece
com ele praticamente não acontece
com mais ninguém hoje na música
brasileira, isto é, o fato de sua
música exibir um frescor e uma maturidade
raramente encontráveis num mesmo
trabalho. Com uma carreira discográfica
iniciada há pouco, Péricles
apresenta algo ao mesmo tempo novo e maduro.
Acontece que ele vem há muito aprofundando
sua visão da arte da canção
popular e intimizando sua relação
com a chamada música popular brasileira.
Nesta, ele se insere hoje por meio de uma
intervenção tão crítica
quanto afetiva, feita de reflexão
e de envolvimento. Do diálogo com
a sua tradição e a sua modernidade,
resulta uma proposta pessoal fina, purificadora.
É o que ele mostra em seus discos.
E como Péricles demonstra saber fazer
disco; quer dizer, fazer de um disco uma
obra, uma obra de arte. Sobre as Ondas patenteia
essa sabedoria e essa sensibilidade.
A simplicidade da instrumentação,
a concisão dos arranjos, a economia
dos recursos e dos meios podem enganar quem
ainda se encanta mais com enormes massas
sonoras e grandes produções
do que com o essencial. Só que Péricles
é um essencialista e este é
um disco de essências e medulas, como
diria o poeta. Já na abertura isso
se evidencia. Com letra de fatura oswaldiana
instantânea (apenas oito versos),
uma canção inicia-se com as
seguintes linhas? “Por todos os canais
/ Por todas as vias / Por todos os canaviais”;
poderia haver maior condensação
textual para um frevo sobre frevo pernambucano?
Daí pra frente as surpresas se sucedem,
numa rede de relações sutis
estabelecidas pela seqüência
e pelo conjunto das músicas. Nos
momentos mais certos, Bach e Berio são
inesperadamente evocados. Tom (“Dindi”)
e Caetano (“Tropicália”)
apropriadamente citados, e Chico Alves e
João Gilberto mais adequadamente
ainda sampleados. Com rigor e liberdade,
delicadeza e precisão, Péricles
passeia por múltiplas paisagens sonoras,
instaura as mais diversas atmosferas, e
no entanto tudo soa natural e nem um pouco
gratuito.
Há sobretudo canções-canções:
a enumerativa “Intimidade”,
a impactante “A Noite em Que Vicente
Celestino Morreu”, a misteriosa “Deuses
e Homens” (com as inversões
imagéticas “aura de carne”,
“sexo ideal”, “orgasmo
astral”). Há canções-quase-não-canções:
“Cara de Mãe”, “Aula
de Matemática nº 2”. E
há até uma canção-não-canção:
“Imagem”, com letra de Arnaldo
Antunes, vocalizada pleas mulheres e os
filhos dos autores, mais uma incursão
experimental de Péricles que, acostumado
a musicalizar textos de poetas concretos,
desta vez comparece também com uma
melodia para um poema de Décio Pignatari.
Em sua diversidade de gêneros, o álbum
é uma prova cabal de como estavam
errados alguns críticos entre os
quais andou em moda, há algum tempo,
a condenação apriorística
de qualquer ecletismo. Frevo (“Por
Todas as Veias”), reggae (“Minha
vanguarda”), samba (“Deuses
e Homens”), choro instrumental (“Vídeo-chorinho”),
rock (“Número Um Nº 2),
baião (“Poesseu, Poessua”),
balada pop (“Com Amor, Com Você”):
Sobre as Ondas tem tudo isso e no entando
tudo é um, como queria Heráclito
(admiração e referência
poético-filosófica de Péricles,
que o citou em “Musical”, gravada
por Caetano). Nenhum problema de unidade
se observa simplesmente porque, por trás
dos elementos constitutivos do material
eclético, está UM homem que
os reelabora, filtra e organiza.
Eis enfim um disco-pensamento, um disco
de um criador-pensador. Sua concepção
e sua realização são
fruto de uma inteligência intuitiva,
de cérebro e coração,
de um “pensar-sentir”, para
aludir ao termo encontrado por Guimarães
Rosa para definir a “brasilidade”.
Brasilidade que permeia a música
de Péricles, só que com os
pés um tanto fora do chão
e as antenas voltadas para o mundo. Mais
que captar, porém, o que ele faz
é emitir ondas sonoras que exprimem
um momento da história musical popular
do Brasil, lembrando o passado e vislumbrando
talvez um futuro, na expresão mesma
do presente.
É o que a última música
do disco, “Mapa-Múndi”,
suma de tudo, me leva a pensar, impressão
reforçada pela inclusão da
gravação de trechos de “Aquarela
do Brasil” e “Garota de Ipanema”
ao seu final. Na letra, colocações
de teor autobiográfico parecem a
certa altura se confundir com refrências
musicais, como se o músico-poeta
assumisse a máscara da própria
música-poesia popular brasileira.
“O mundo é uma grande praça
feita pra mim”, termina dizendo Péricles,
como que encarnando a entidade da MPB e
encarando seu lugar no planeta.
É interessante que Sobre as Ondas
esteja saindo por um selo chamado Radical.
Péricles Cavalcanti é um atualizador
radical da tradição multifacetária
da MPB.
Carlos Rennó